Ainda tem cheiro de cavalo na minha cidade


Outro dia eu vi um cavalo pela cidade, em pleno asfalto e em meio ao trânsito. O cheiro do bicho me invadiu totalmente. Aquele cheiro ocre, quente, ácido, de vida vivida solta. Enquanto o ar ainda estava preenchido pelo bicho, pensei: “Ainda tem cheiro de cavalo na minha cidade”. Fechei os olhos e me demorei com essa constatação - o cheiro já fraquinho, mas ainda presente: “Agora, neste exato momento, ainda tem o cheiro”, repeti. Até que não mais.
Cada cidade tem seu próprio mosaico de cheiros, sons e formas não humanas que aos poucos vão desaparecendo.
É verdade que, no caso particular da minha cidade, alguns sons não humanos são difíceis de exterminar: o som das ondas quebrando na praia, por exemplo. Estava ali bem antes de qualquer ser humano brotar na face do planeta. E vai continuar depois que a gente se for e nossa espécie não passar de objeto arqueológico para espécies futuras, quem sabe.
Mas não faz muito tempo, esse território que hoje é o bairro por onde ando certamente esteve dominado pelo cheiro doce dos frutos maduros dos cajueiros, e também oliveiras, e pés de cajá e siriguela, e araçá, e pitanga que foram sendo derrubados um a um para dar lugar para cimento, puro cimento, que enterrou o cheiro doce das frutas. Há algumas décadas, a paisagem sonora do meu bairro tinha os cantos de pássaros que nunca mais ouviremos, e também o rugido de onça e sons de macacos que fugiram assustados do bicho homem e até hoje, para viver, seguem fugindo.
Solastalgia
Dentro da psicologia climática - esse campo que atua na interface entre a mente humana e o planeta em transformação - há um conceito que descreve bem essa experiência: a solastalgia. Ela é definida como um sofrimento ou angústia crônica que se sente ao testemunhar a transformação negativa de uma paisagem amada e familiar, e a sensação de impotência diante dessa perda.
Acho que mesmo o mais insensível dos seres humanos carrega um tanto de solastalgia no coração nesses tempos. Mas qual seria a palavra para definir a experiência oposta? Se solastalgia é a “angústia diante da transformação negativa do nosso território”, que palavra explicaria a “felicidade diante da transformação positiva do nosso território”?
Resolvi me perguntar sobre isso depois de estar diante desse “fenômeno”: uma pessoa manifestando a emoção de testemunhar uma espécie que há poucas décadas estava em grave perigo de extinção e que voltou a prosperar em abundância. Alice Piva é ativista ambiental e uma das participantes do nosso Programa de Desenvolvimento de Facilitadores no Trabalho Que Reconecta. Durante a formação, praticamos a Assembléia de Todos os Seres, um exercício em grupo criado por John Seed e Joanna Macy, que nos convida a oferecer nossa voz para seres não humanos.
Alice escolheu a baleia jubarte e quando emprestou sua voz a ela, disse algo parecido com isto: “Eu fui caçada e assassinada. Quase desapareci do planeta, mas vocês, humanos, aprenderam a me amar. E hoje cá estou, com a família cada vez maior”. Da nossa Assembléia, com quase trinta diferentes espécies de seres, a jubarte foi a única que não falou a partir da solastalgia. Ela manifestou a alegria de ter sobrevivido, de ter sua dignidade reconhecida, de poder continuar a cuidar da sua espécie, de poder seguir enriquecendo e embelezando a teia da vida.
Se você tiver uma sugestão de nome para esse sentimento, estou curiosa em saber. Acho mesmo que seria bom dar um nome para ele. Se é dando nome ao mundo que o mundo passa a existir, temos que forjar um vocabulário da resiliência, da vitória do amor. Você não acha?

Sobre essa newsletter
Esse texto faz parte do Radicalmente Presente, que Bruna Buch e eu decidimos definir como “uma resposta ao som estranho do nosso mundo” (leia mais aqui em nosso manifesto). Nós escolhemos o email como canal para comunicar o que vier em nosso coração (e abdicamos com alívio do frenesi das redes sociais). Nossa intenção é trazer reflexões e histórias na intenção de nos ajudar a navegar com mais compreensão - ou seja, mais amor - em nosso mundo em transformação. Nosso ritmo vai ser gentil: dois emails por mês. Vem, que vai ser gostoso.
Com carinho,
Lia Beltrão
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